terça-feira, 18 de maio de 2010

Pelas terças de cortejo

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Compreendem-se as tentativas de reinventar a tradição, uma vez por outra. Ora porque se acredita que os tempos mudam e é preciso “avançar”; ora porque se reconhecem erros que a tradição, por si só, não justifica; ora porque, até concedo, se quer marcar uma posição na história: de uma instituição, de uma cidade, de um país. Todas razões atendíveis, compreendendo a natureza do mundo e dos homens, e que, por vezes, determinam a mudança. Muito bem.

Compreenda-se, aliás, que a tradição impõe, frequentemente, uma visão conservadora das coisas, impede o progresso, anula, se não for corrigida, aqui e ali, muitas das grandes conquistas civilizacionais a que devemos prestar homenagem. Não há tradição - social, familiar, empresarial, política até - que deva resistir ao impulso de um sociedade cada vez mais igualitária, da paridade entre os géneros, da protecção dos trabalhadores, de uma democracia participativa. Eis o que justifica, afinal, o abandono das piores tradições, mas que justifica, também, a afirmação perene das melhores.

Partindo daqui e olhando para Coimbra, depois de mais uma Queima das Fitas, quero pronunciar-me contra a transferência do Cortejo para o dia de Domingo.

Porque o abandono da tradição, neste particular, não responde a um avanço social que, inexoravelmente, a ultrapasse; porque nela se não identificam erros grosseiros, em disputa com os nossos valores essenciais; porque mesma a vontade de marcar uma posição na história, a existir, não se cumprirá pela transformação de um Cortejo único, num mero desfile de Carnaval.

A crédito daquela mudança ouve-se, sobretudo, a necessidade de proporcionar às famílias, fora da semana de trabalho, a oportunidade de aplaudir os seus jovens doutores. Tanto mais que são muitos os que vêm de fora e ao tempo do cortejo acrescentam, necessariamente, umas horas de viagem.

Sucede que, na esmagadora maioria, nunca as famílias deixaram de encontrar forma de marcar presença na colorida festa dos estudantes. Um dia único, afinal, nas suas vidas. E sucede também que, nos tempos de hoje, são cada vez menos os estudantes deslocados em Coimbra, oriundos, como no passado, dos confins de Portugal.

Mas sucede também, e sobretudo, que o Cortejo não é, não foi nunca, uma festa dos estudantes e das suas famílias. O Cortejo é também uma festa da cidade, um reencontro consigo mesma, um ritual precioso que, como poucos, sublima a dualidade essencial de Coimbra. Perdê-lo naquelas tardes de terça-feira, tardes de encontro e partilha, de reconciliação, entre a Coimbra universitária e a Coimbra futrica é perder, afinal, uma parte substantiva da identidade Coimbrã.

Paulo Valério, hoje, no Jornal de Notícias.